Hoje começa um daqueles desafios que adoro aceitar. A edt. me convidou para escrever sobre os livros de montagem que inventei de mandar pra eles de presente. Criamos uma pasta biblioteca no drive para armazenar o fruto de meu transtorno obsessivo acumulativo de PDFs sobre o tema. Como diria um amigo jornalista, sou o típico fake reader. Me aproximei da montagem como resultado de uma paixão fetichista pelos botões iluminados da ilha de edição, e acabei descobrindo o universo do cinema. Com a literatura tenho uma relação semelhante. Adoro livros físicos, kindles e pdfs. Mas leio muito menos do que deveria. Tento compensar meu vício de acumulador presenteando os amigos devoradores de livros com o que posso compartilhar. Volta e meia mato um, soterrado em epubs. E a galera da edt., espertos que são, resolveram me pedir ajuda para dar cabo da tonelada e meia que despejei na porta deles. E aqui estou, tentando escolher o primeiro plano pra botar no timeline.
Decidi. Vou começar pelo mais difícil. Levei três anos e meio para ler esse livro. É um livreco pequeno de tamanho, uma versão pocket de 2007 da Edições Texto & Grafia de Portugal. Mas é monstruoso de conteúdo. Sobretudo para os não acadêmicos como eu. Mas valeu a pena (espero!) o sacrifício. Vou tentar justificar aqui os motivos porque você também deveria traçar esse pequeno grande livreto que é um tratado sobre o nosso métier.
Livro: Estética da Montagem, de Vincent Amiel
O livro se divide em quatro partes além da introdução, que já é também um capítulo:
Introdução – a questão da planificação
Capítulo 1 – A montagem narrativa
Capítulo 2 – A montagem discursiva
Capítulo 3 – A montagem de correspondências
Capítulo 4 – A escrita e a mão
Antes da introdução, ainda tem um “Preâmbulo” em que o autor apresenta o recorte da sua abordagem e professa a visão que tem sobre a dimensão dessa operação, essa “cosa mentale” que vai além da técnica. Diz ele: “É também uma princípio de criação, uma maneira de pensar, uma forma de conceber os filmes associando imagens.” O livro seria então uma tentativa de realçar a dimensão fragmentária da estética cinematográfica, que ele acredita ter sido compartilhada por muitas outras artes no século XX, assim como tentar uma síntese das diferentes formas como a montagem aparece nos filmes. No decorrer dos capítulos seguintes, vai demonstrar em profundidade essas diferenças de escolhas analisando cineastas como Orson Welles, Resnais e Pialat, entre outros.
Na introdução, Vincent apresenta a ideia de que o surgimento e evolução da montagem e da articulação da linguagem audiovisual é o resultado de uma transformação cultural que acontece na virada do século XIX para o XX, que seria o “século das associações de imagens”, e que nos traz um olhar fragmentado sobre o mundo que encontra uma resposta catalisadora nos quadrinhos, cinema e televisão. A montagem surge como uma possibilidade de oferecer rupturas e continuidades, associações e unidades às representações artísticas da cultura contemporânea, e encontra sua máxima expressividade formal no cinema.
Quando fala sobre a montagem como operação técnica, analisa as sutis variações conceituais que o termo permite, comparando nomenclaturas consideradas sinônimos pela maioria dos afoitos e poka-práticas nas hermenêuticas dos paranauês dos glossários acadêmicos. Qual a diferença entre cutting e editing, por exemplo? Tá ali na introdução. Ele cita o contexto da montagem em documentários, sua importância e fusão com o os processos de argumento e roteiro para ilustrar essa diferença entre os termos. Fala sobre decupagem (ou planificação, em português de Portugal) para buscar os limites (e ausência de limites) entre o argumento/roteiro e montagem, trazendo reflexões de Kuleshov sobre isso na época ele chamava de “montagem de planos americana”, o planejamento antecipado dos ângulos e cortes, a continuidade lógica e cronológica entre fragmentos de tempo e espaço confinados em celulóide. Compara essa montagem entendida como extensão da decupagem que costumamos chamar de narrativa, de continuidade, clássica, etc, com aquela praticada por “cineastas-montadores” como Eisenstein, Welles, Resnais ou Godard, que Amiel identifica como adeptos de uma montagem radical, aparente, descontínua, disruptiva. O realismo versus a reflexão sobre o real, a representação naturalista versus a demonstração das estruturas dos acontecimentos. Vincent termina sua introdução, sim, ainda não saímos da introdução, meus amigos(!), sublinhando as implicações estéticas que essas duas concepções de montagem, ora como extensão da planificação, ora como “colagem”, se configuram como lógicas distintas de construção narrativa com impactos diametralmente opostos no espectador. Alguns poucos diretores se utilizam das duas concepções em seus filmes, como John Cassavetes, por exemplo. A tabela a seguir simplifica bastante o que será tratado nos capítulos 1, 2 e 3:
Tipo de montagem | Articulação dos planos | Relação entre os planos | Princípio de junção | Princípio de transmissão | Representação do mundo | Procedimento estético dominante |
Montagem Narrativa | Contínuo | Articulação | Raccords necessários | Transparência (mimética) | Um mundo evidente | Planificação |
Montagem Discursiva | Descontínuo | Confrontação | Escolhas Inteligíveis | Demonstração | Um mundo a construir | Enxerto |
Montagem de Correspondências | Descontínuo | Ecos | Conexões aleatórias | Sugestão | Um mundo a perceber |
Colagem |
No capítulo 1 – a montagem narrativa – Vincent Amiel apresenta o surgimento da “montagem articulada” e seu papel constitutivo do cinema como o conhecemos hoje. A invenção da continuidade e a consagração do cinema como suporte/meio narrativo, a influência de Griffith na consolidação dessas convenções que permitiram aos cineastas e espectadores desfrutarem de uma unidade diegética, emulação de fluxo de tempo contínuo em linha que atravessa e costura fragmentos de tempo enquadrados de forma descontínua. A “pragmática da planificação”, o paradoxo, a mentira da continuidade cinematográfica que só existe no filme montado é um milagre onde Vincent mergulha e nos leva para nadar. Nos fala sobre os raccords de imagem e som, convenções que permitem a organização mecânica desses fragmentos isolados e os dispõe em uma “irreversível linearidade”, sobre as variações temporais, os saltos no tempo e espaço, a montagem paralela, as variações estéticas dos flashbacks e tudo o que estes significaram para enriquecer a capacidade do cinema para contar histórias. Fala sobre as rupturas de tom, intervenção da montagem que afastam ou aproximam o espectador para oferecer uma nova perspectiva sobre a história, a cisão e suspensão do tempo, o montador como narrador, o papel da montagem no documentário, os planos seqüência, a elasticidade do quadro temporal: da vacuidade em Antonioni à aceleração da ação em Michael Bay, a evolução da montagem a partir de Cidadão Kane (O Mundo a seus Pés, em português de Portugal) e também Une Histoire Immortelle, um dos últimos filmes de Orson Welles que foi rodado para a TV francesa em 1966. Todos os conceitos são acompanhados de exemplos e indicações de trechos de filmes fáceis de se encontrar nos making offs da vida.
No capítulo 2 – a montagem discursiva – Vincent Amiel analisa um tipo de montagem que se contrapõe ao fluxo “hipnótico” naturalista da montagem narrativa. Diz Vincent Amiel (não gosto de usar apenas o sobrenome como os acadêmicos) que “existe uma forma de montagem que, não procedendo de forma mimética, tenta demonstrar relações e organizar significações que não são óbvias. É o que designaremos por montagem significante, a qual, ao utilizar as formas do discurso, possibilita construir um mundo a cujo fluxo já não basta abandonar-se.” Quase transparece aqui nesse trecho um certo juízo de valor, mas não é o caso. Vincent não nos fala apenas sobre um afastamento da lógica da mimese (re-encenação) do tempo real vivido, mas sim de uma lógica mais impressionista, uma tentativa de desconstrução dessa lógica de duplicação mecânica do real tal como o faz a fotografia, nas palavras de Christian Metz (que considero inatingível para os não iniciados), “o cinema tem como material principal um conjunto de fragmentos do mundo real […] É principalmente pela forma de os organizar, de os aproximar, que o cinema, subtraindo-se ao mundo, se torna um discurso sobre o mundo.” O autor traça um paralelo entre essa lógica da montagem discursiva e a pintura de Delaunay, citando sua teoria das cores. É uma lógica de justaposição que se preocupa mais com a ressignificação promovida por essas aproximações de fragmentos do que com a reencenação de um evento e sua verossimilhança com personagens ou situações reais. “Justapondo duas realidades a priori sem medida comum, esta montagem que ‘se torna discurso’, e que poderíamos portanto chamar de forma mais ampla ‘montagem discursiva’, obriga cada uma dessas realidades a assumir um sentido novo, a ser olhada de outra forma, a entrar na lógica de uma significação diferente.”
O autor se refere a esse tipo de montagem como mais próximo da “colagem”, outro termo que passa por sinônimo de montagem na maior parte das conversas entre montadores. Sim, eu me senti meio Bolsonaro lendo passagens desse livro. Sempre que me irrito com o que se apresenta mais refinado do que minha educação permite alcançar, me sinto meio Bolsonaro. Vontade de xingar tudo isso daí! Mas como tenho mais apreço pelo conhecimento do que pela ignorância, me permito viver a frustração dessa “cegueira que tem cura” por alguns segundos. Atiro o livro na parede, chuto umas cadeiras e volto ao tormento que precede a felicidade que acompanha a compreensão. Não desista, bravo apertador de botões, colador de durex insone, plantador de raccords que ninguém sabe e ninguém vê. Pelo menos não é o Eisenstein (que surra inesquecível, meu Deus!) Avante! “…cada fragmento ecoa a sua própria esfera de significação.” Esse cara, o Vincent, é mais do que claro, chega a ser poético. Mesmo traduzido para o português de Portugal.
Nesse capítulo ainda ele desbrava os russos, o fragmento como princípio. Em Eisenstein, “o fragmento, então, já não é um detalhe, é uma representação.” aponta ecos mais recentes dessa lógica de montagem em Resnais, Kieslowski, Kubrick, Godard, citando exemplos de várias cenas em seus filmes. Fala sobre a importância do plano detalhe (grande plano, em português de Portugal) nesse sentido. O detalhe é sempre disruptivo, mesmo em montagens narrativas. Ele aponta, sublinha, ressignifica a si e aos planos circundantes, convida o espectador a acordar do sonho e perceber relações de causa e efeito, juntar lé com cré: “Do rosto de Greta Garbo à seringa de ‘Pulp Fiction’, passando pelas baionetas de Eisenstein, o grande plano deu provas da sua capacidade de fulgurância, de arrebatamento, de ruptura estética.”
As figuras de retórica é outro sub-tema desse capítulo, e segue nessa pegada de que o cinema pode mais do que imitar a vida. Que pode, através da montagem, “desencadear articulações de ordem intelectual”. Transformando fragmentos de imagem em fragmentos de discurso que vão muito além do registro da imagem puro e simples e seus referentes reais ou fictícios, o cinema os transforma em signos. Aqui ele opõe a montagem narrativa e a discursiva, apresentando similaridades entre figuras de linguagem, como a metáfora, e as colagens feitas tanto por Eisenstein como Chaplin, e que vai ser uma das técnicas mais utilizadas por Vsevolod Pudovkin em suas grandes narrativas épicas. É o que passamos a chamar de montagem intelectual, aquela coisa no estilo ideograma japonês:
“Plano A: um rebanho de ovelhas avança.
+
Plano B: operários saem de uma boca do metrô.
=
Significado: os operários são (tratados) como ovelhas.”
Vincent segue apresentando similaridades também com outras figuras de linguagem como a sinédoque, a gradação, repetição, antítese, elipse (essa já nossa amiga de longa data), anacoluto (equivalente ao falso raccord explícito) e acumulação, entre outras que ele não cita mas deixa claro que existem. Em seguida fala sobre o cinema publicitário, obviamente, um exemplo mais do que perfeito para o uso pragmático utilitarista da montagem. A função do filme publicitário é explicitamente esta: “influenciar o olhar do espectador em relação aos produtos apresentados, a forma de os consumir, sua relação com a sociedade, etc.” Trata-se de um discurso sobre o mundo a partir de uma visão idealizada do mundo, ressignificada, etc. Aqui estamos em casa. Lembrei do processo de aprovação dos comerciais, em que diretores, criativos e clientes assistem o filme quadro a quadro, o que evidencia a importância de cada frame do discurso: “Este primeiro traço dominante da “estética (ou estratégia) publicitária tem como consequência dar a cada plano, e a cada articulação, uma importância considerável que devem apresentar-nos um universo, e um ponto de vista sobre esse universo.” Vincent reconhece o quanto a publicidade trouxe desafios para a montagem, a necessidade de informar e convencer em tão pouco tempo e com tantos planos, que se refletem na relação do espectador com o cinema e nas técnicas de raccord e ritmo das montagens.
Depois da publicidade, ainda no capítulo 2, há um subtema dedicado aos documentários de arquivos, outro exemplo perfeito de montagem discursiva, quando o montador dispõe de material bruto filmado com objetivos e contextos específicos e organizados a partir de um princípio exterior, e demonstrativo. Em seguida, Vincent dedica o restante do capítulo a uma análise dos filmes de Resnais (Guernica e Hiroshima Monamour), demonstrando neles a lógica da montagem discursiva em detalhe.
Esse texto era para ser um teaser, mas não cheguei nem na metade e já entrei na página cinco. Se você não ficou com vontade de ler o livro até agora, duvido que mais cinco páginas o convençam. De qualquer forma, vou dividir o texto em duas partes. Na parte dois, que deve sair daqui uma ou duas semanas, farei outro teaser sobre o capítulo 3 – a montagem de correspondências – e o 4 – a escrita e a mão. Espero que tenham gostado. Até lá. 😉
Leia a segunda parte desta entrevista: https://edt.org.br/noticias/biblioteca-edt-com-alfredo-parte-ii/
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